Aos fantasmas que me reconhecem

Aos fantasmas que me reconhecem: parabéns! Eu mesmo não me reconheço e não sei o caminho para o reconhecimento. Nunca fui muito de recordações, e me auto-esclerosei através do viver. “O que não deu certo é apenas o passado” e a distância entre nós nunca foi maior. Estou ciente de que meu corpo carrega nas juntas, na carne, e provavelmente no DNA também, tudo que deu certo e não deu; tudo que houve. Mas há tempos que nossos dialetos se divergem. Não sei decifrar uma gama infinda de dor e prazer. Choros inesperados e Risos na hora errada. De onde vêm e por que razão não me é intuitivo. Não sei se algum dia foi, mas me sinto no apogeu da ignorância. Me sinto no apogeu da ignorância.

Eu que sempre fui pessoa caminhante, certa da trilha mesmo sem mapa ou destino, me encontro de repente pedindo ajuda aos passantes para encontrar a mim mesmo. Talvez nas caixas de amarelados ingressos de cinema dos outros exista roupa que me caiba. Talvez nas ruínas cibernéticas dos arquivos de sms eu encontre as palavras que me fugiram. Eu me lembro, mas eu não realmente me lembro. Eu morri? Eu morri e estou a lembrar de minha vida? É essa a neblina? Meu enjôo é mareamento do rio Aqueronte e do balanço da barca de Charon (sic)?

Na prática, a ausência do meu passado me leva a um contínuo pulo do precipício adiante. Converso com estranhos–crio laços até. Me infiltro em sistemas capitalistsas e dou minha opinião. Sou sincero, aprazível, organizado, simpático e gentil. Em outras palavras: inteiramente babaca. Tudo sem saber por que ou como cheguei aqui. Acordo na neblina, vou dormir na neblina, peço que se orgulhem de mim os fantasmas que vivem dentro do meu telefone, e durmo mal. Por mais que de dia eu faça papel de esclerosado na peça em que suponho ter sido escalado, de noite meu subconsciente e meu corpo têm que revisar minhas provas. Futilmente, tentam fazer sentido das respostas anacronísticas de um ser que não estudou e nem pareceu entender direito a proposta de cada questão. O resultado é dor nas costas, no pescoço, insônia recorrente, literalmente as minhas retinas sendo rasgadas pelas minhas pálpebras e sonhos com pessoas com quem eu gostaria de ter vivido pra sempre, porém escolhi fingir que não existem, porque frequentemente eu não me amo.

Quem nunca sofreu um mar de lágrimas dentro do mais resolvível dos problemas? Em 2021, não sei se tenho o direito de desabafar sobre minha confusa exaustão ignorante nem para o vácuo raivoso da internet pós-verdade. Portanto, como me jogo completamente pra frente, há apenas o agora-jorrar-internalidades e não o refletir. Eu gostaria de refletir, realmente eu gostaria. Porém, pra falar a verdade, me tornei um pouco cínico sobre a reflexão. Por que encarar o barulho ensurdecedor do vazio universal? Que benefício me traz atravessar as chamas e a chuva de granizo para uivar na noite infinda do outro lado? Por que é importante um ser-humano se conectar com todos os outros seres vivos e enxergar o seu lugar na grande ceia bacanaliana em que todos são o prato principal?

Enfim, me tornei um amedrontado. Apavorado de ferir o mundo. Apavorado de adicionar à carência o caos. Amedrontado de viver sozinho, mesmo sabendo que é a única solução. A resposta de todas as questões. As palavras que ecoam no espaço, emplastradas em todas as paredes de todas as cidades. “A vida é a incerteza. A morte é a certeza.” Há apenas uma forma de não ferir, uma forma de não sofrer, uma forma de fazer sentido e uma forma de dormir bem. O resto é a vida. A dificuldade é escolher a vida enquanto ela ocorre, sem saber o que significa escolher a vida.

Se me matei em alguma esquina, preciso retornar ao meu corpo. Só reencontrando meu corpo posso continuar a viver. No meu corpo estão as minhas cordas vocais, os meus olhos, pulmões, bexiga, a minha urina, os meus dentes, as minhas bactérias, meus traumas, meu gozo, e as minhas coxas. Sem meu corpo eu não cago, eu não como, eu não saio e eu não entro. Só vou ao trabalho todo dia e finjo ser vertebrado quando na verdade sou mais como uma lesma marinha que do oceano pre-histórico viajou no tempo e saiu desse lado teclando e usando cartão de crédito sem parar pra pensar como ela chegou aqui. Eu preciso do meu corpo pra não ser lesma. Eu preciso do meu corpo e eu não sou uma lesma. Por mais que todas as minhas músicas sejam sobre flutuar pra sempre no fundo do mar, eu não sou lesma.

Desculpa, no início eu estava mais me comunicando com você leitor, tentando passar uma ideia ou traduzir uma experiência interna, e agora no final virei um pouco a comunicação a mim mesmo porque tive uma espécie de resolução para o problema que apresentei. Eu realmente acabei mais positivo do que comecei. Acho que comecei me sentindo lesma. Não sou uma lesma. É o poder da escrita, não é, de realmente mudar a perspectiva do escritor sem precisar que ninguém leia. Porque obviamente ninguém lê. Se as pessoas lessem a gente não estava onde está, mas aí é outro problema que dá pano pra outro texto então vou parar por aqui.

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